Odeio os indiferentes, de Antônio Gramsci
A indiferença atua poderosamente na história. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça mas porque a massa dos homens abdica da sua vontade. A fatalidade que parece dominar a história não é mais do que a aparência ilusória deste absentismo. Por Antonio Gramsci.
13 de Janeiro, 2022
- 22:07h
A indiferença é o peso morto da
história. É a bola de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se
afogam frequentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda
a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do
que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os
assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta
heroica.
A indiferença atua poderosamente na
história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se
pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os
mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e
a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um
ato heroico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à
iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros
que são muitos.
O que acontece, não acontece tanto
porque alguns querem que aconteça mas porque a massa dos homens abdica da sua
vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode
desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir
ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade,
que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta
indiferença, deste absentismo. Há factos que amadurecem na sombra, porque
poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva,
e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso.
Os destinos de uma época são
manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com
ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não
se preocupa com isso. Mas os factos que amadureceram vêm à superfície; o tecido
feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar
tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenómeno
natural, uma erupção, um terremoto, de que todos são vítimas, o que quis e o
que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi
indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às consequências, quereriam
que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns
choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos
põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse
procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que
sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu ceticismo, ao
facto de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos
que, precisamente para evitarem esse mal, combatiam (com o propósito) de
procurar o tal bem (que) pretendiam.
A maior parte deles, porém, perante
factos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas
definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam
assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as
coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspetivar excelentes soluções para
os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla
preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são
belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é
animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do
pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam
ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum género.
Odeio os indiferentes também, porque
me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos
eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe
quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que
posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso
repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas
consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que
estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número
reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à
fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a
olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não
haverá quem esteja à janela emboscado e pretenda usufruir do pouco bem que a
atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão
vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.
Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os
indiferentes.
Texto originalmente publicado em La Città
Futura, a 11 de fevereiro de 1917. Traduzido por Pedro
Celso Uchôa Cavalcanti para o Marxists Internet Archive(link is external)
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