segunda-feira, 4 de agosto de 2014

POLÍTICA 2014



consciência jurídica de Aécio Neves
De modo previsível, a campanha de Aécio quer virar a página em relação a essas denúncias, que se tornaram um reconhecido obstáculo para seu plano de voo.

Fabio de Sá e Silva (*)

“Quando o então Governador Aécio Neves depositou a indenização que entendia justa pela pista de pouso mantida na Fazenda de seu tio avô, o Estado de Minas Gerais imitiu-se na posse dessas terras e, portanto, foi criada a base legal para a construção, naquelas terras, de um aeroporto.”

“Quando pousou por diversas vezes de avião ou helicóptero no local, mesmo antes da homologação deste equipamento perante a ANAC, Aécio estava resguardado por uma Portaria da agência que regula pousos e decolagens antes da homologação dos equipamentos.”

As duas proposições acima refletem os principais argumentos lançados pelo candidato do PSDB à presidência, Aécio Neves, na tentativa de rebater as denúncias da Folha de São Paulo sobre o Aeroporto que, durante sua gestão como Governador de Minas Gerais, foi construído em terras de seu tio-avô, Mucio Tolentino, na pequena cidade de Claudio.

São argumentos que, em reiterados textos, a própria Folha tem considerado até agora como insuficientes. Entre outras coisas, diz o jornal, porque não superam questões que se tornaram prementes após as denúncias. A necessidade da construção do aeroporto, já que bem próximo dali, em Divinópolis, havia equipamento capaz de atender a região (e demanda muito maior por serviços aeroportuários); o controle da chave do aeroporto pelo tio-avô do candidato, apurado pessoalmente pelo repórter Lucas Ferraz; a realização de outra obra questionável em Montezuma, onde o próprio Aécio mantém Fazenda; o preço da obra de Claudio, muito superior ao de empreendimentos congêneres; e a possibilidade de que a desapropriação das terras usadas na construção absorva irregularidades anteriores – já que mesmo a pista de cascalho anteriormente situada ali havia sido construída com recursos públicos – são apenas algumas delas.

De modo evidente e previsível, a campanha de Aécio quer virar a página em relação a essas denúncias, que, se de início foram desprezadas, agora são um reconhecido obstáculo para o plano de voo do tucano nas eleições. De modo correto (e para muitos inesperado), a grande imprensa e a opinião pública insistem em trazer para debate os pontos nos quais a história ainda não fecha.

Para quem se preocupa com o direito, no entanto, pode haver mais a ser extraído desse embate.

A partir dos anos 1990, a teoria jurídica (em especial no âmbito do direito público) passou por consideráveis transformações. As dificuldades para se cumprir as promessas dos textos “dirigentes”, como os da Constituição Portuguesa, em larga medida resultante do contexto material (econômico) contra o qual esses mesmos textos se opunham, promoveram guinadas na forma pelas quais os juristas passaram a entender o seu objeto de estudo (a norma).

Uma das primeiras medidas assim adotadas – diga-se de passagem, em importante ruptura com as formas mais cristalizadas do positivismo – foi distinguir entre texto e norma. O texto passa a ser visto como o ponto de partida para a construção da norma, ou seja, para a determinação em concreto do que é permitido ou proibido. A norma torna-se o produto de construção argumentativa, a qual tem início nos textos, mas resulta fundamentalmente de um processo de interpretação. A teoria do direito passa a ser devedora das teorias de interpretação (hermenêutica), mais que das teorias da norma jurídica, como havia ocorrido entre os séculos XIX e XX.

Nem por isso, todavia, as referências do positivismo seriam completamente abandonadas. A interpretação continua impossível de ser determinada por racionalidades exteriores às do sistema jurídico, tais como a moral ou a economia – sistemas sociais com cujos códigos, quando muito, diriam alguns, o direito mantém relação de “irritação”. O pós-positivismo não é, necessariamente, sinônimo de antipositivismo.

Por isso mesmo, a hermenêutica introduz distinções e categorias que procuram configurar o repertório de textos legais (as fontes principais do direito, em tradições como a nossa) como sistemas passíveis de reconstrução permanente.
A principal delas (ou ao menos a mais popular), foi a distinção entre regras e princípios: se as regras são prescrições concretas sobre o que, para fins de direito, é permitido ou proibido, os princípios são as aspirações abstratas a partir das quais é possível dar às regras uma amarração discursiva e, assim, conferir integridade ao sistema.

A introdução desse tipo de recurso teórico não daria apenas mais flexibilidade ao direito, permitindo que ele se adaptasse mais facilmente a uma sociedade em processo de complexificação: ela também tornaria o direito mais democrático, ao permitir que múltiplos sujeitos pudessem participar da construção das normas, bastando, para tanto, que se dispusessem a articular suas pretensões em diálogo (ainda que tenso) com tais princípios.

É por passarem ao largo dessas exigências que, para quem procura considerar os argumentos de Aécio em relação à construção do aeroporto de Claudio sob o ponto de vista efetivamente jurídico, eles soam não apenas insuficientes, mas às vezes até perigosos.

Afinal, para que se situem confortavelmente em relação ao direito, tais argumentos devem se mostrar condizentes não só com enunciados formalmente lógicos (se há imissão do Estado na posse do imóvel e se há norma que regula pousos e decolagens em aeroportos não credenciados, nem a construção nem o uso do aeroporto pelo candidato violam deveres juridicamente estatuídos), mas também com compreensões mais amplamente partilhadas acerca do que a própria Constituição estabelece como princípios da administração pública – em especial os da eficiência, da impessoalidade e da moralidade administrativa.

Pessoas que participaram de círculos decisórios no governo FHC relatam grande impaciência dos tucanos da época com a necessidade de legitimar decisões de política pública perante o direito. FHC e muitos de seus auxiliares entendiam que o direito deveria se curvar frente a imperativos de outras ordens, em especial os de ordem econômica. Embora bem escondido sob a linguagem e as práticas liberais, o ranço da modernização autoritária presente no projeto tucano se revelava aí.

No embate sobre o aeroporto de Claudio, Aécio consegue ser pior que seu antecessor do PSDB. Ao procurar amparo em proposições construídas (talvez propositadamente) em termos que restringem nossa capacidade de problematização – afirmando a autoridade de regras, mas evitando examiná-las em função de princípios –, o candidato manifesta uma consciência jurídica que, além de ultrapassada, é infensa a qualquer pretensão de controle democrático sobre atos de gestão.

(*) FABIO DE SÁ E SILVA é bacharel (USP ‘02) e mestre em direito (UnB ‘07) e PhD em Direito, Política e Sociedade (Northeastern University, EUA, ‘13).

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